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Espaço LusofoniaMemória de Amílcar Cabral em reconstrução no seu centenário

Memória de Amílcar Cabral em reconstrução no seu centenário

Em dezembro de 2022, o Presidente da República atribuiu o Grande-Colar da Ordem da Liberdade a Amílcar Cabral. Numa cerimónia realizada no Mindelo, onde a universidade local atribuiu também o Doutoramento Honoris Causa ao líder da luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, Marcelo Rebelo de Sousa destacou do “homem grande” a “personalidade moral ímpar, ombreando, senão superando, [Nelson] Mandela, [Léopold Sédar] Senghor, [Eduardo] Mondlane, [Jomo] Kenyatta e alguns mais”. No ano passado, no cinquentenário do seu assassínio, Portugal – cuja ditadura à época é suspeita de ter agido em conluio com os militantes do PAIGC que o executaram – voltou a evocá-lo através da exposição Cabral Ka Mori. Incluída nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, a exposição foi adaptada e está agora no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, em Bissau, uma iniciativa do Instituto Camões. Na terra em que Cabral nasceu e viveu os primeiros 8 anos, termina hoje um simpósio organizado pela Fundação Amílcar Cabral, depois de ter tido início na Cidade da Praia, onde a fundação tem sede. A ausência de comemorações oficiais no país liderado por Umaro Sissoco Embaló contrasta com o reconhecimento português, e demonstra como a memória do herói guineense e cabo-verdiano não é um tema estanque.

“No caso da Guiné, a situação, atendendo a toda a evolução muito plena de acontecimentos da sua História recente, a memória que de Cabral é feita também é um pouco efeito dessas modificações no presente”, diz José Neves, historiador e comissário da exposição Cabral Ka Mori (Cabral Não Morreu), agora em livro-catálogo, em equipa com a investigadora Leonor Pires Martins. Neves dá como exemplo o facto de a exposição patente em Bissau ter sido mostrada em primeiro lugar no Palácio Presidencial, no contexto daquilo que as autoridades políticas na Guiné hoje celebram como o Dia Nacional, que passou a ser o Dia das Forças Armadas e deixou de ser celebrado no dia da Declaração Unilateral da Independência. “Nestas variações, que não têm a ver diretamente com a figura de Cabral, mas que afetam a sua memória, nestas variações do presente vamos vendo as reproduções do passado”, considera.

Sissoco Embaló anunciou que as comemorações do centenário de Cabral serão associadas às celebrações dos 60 anos das Forças Armadas, que se assinalam em novembro. O presidente da Fundação Amílcar Cabral, o ex-chefe de Estado cabo-verdiano Pedro Pires, criticou esta medida, bem como a alegada proibição de afixação de cartazes alusivos ao centenário. “Nas sociedades onde tenha uma certa força o pensamento mágico, os traidores têm medo, não conseguem encarar a fotografia das pessoas que traíram, não conseguem encarar o nome das pessoas que traíram”, disse Pires, citado pela Lusa.

Também em Cabo Verde, a figura que defendia a unidade do arquipélago com a Guiné não recolhe a unanimidade. Em novembro passado, o Parlamento rejeitou a proposta do Programa de Comemorações da referida fundação, o que levou o presidente, José Maria Neves, a lamentar a decisão e a defender que “todos os países devem cuidar dos seus símbolos, devem cuidar dos seus heróis, têm o dever de memória”.

Outro Neves, o investigador do Instituto de História Contemporânea e professor na Universidade Nova de Lisboa, cita o trabalho dos colegas Miguel Cardina e Inês Nascimento Rodrigues. “Podemos ver que no caso de Cabo Verde há uma variação no início dos Anos 90, quando a memória, digamos assim, a narrativa memorialística da História de Cabo Verde passa por um processo que outros autores têm chamado de uma certa desafricanização dessa identidade construída para Cabo Verde, e nesse processo de desafricanização, que corresponde também com as transformações político-constitucionais em Cabo Verde, e portanto a saída do PAIGC de uma posição hegemónica, dominante no Estado, e que coincidem também com as viragens geopolíticas mais globais, como a queda do Muro de Berlim, as transformações no contexto africano.” E nesse contexto de desafricanização específico, a memória de Amílcar Cabral “torna-se menos intensa” e é “um pouco higienizada”, ou seja, passa a ser “uma espécie de referente da unidade nacional, uma figura de referência cívica, ética, moral, mas despolitizada, nomeadamente em relação aos conteúdos anticoloniais”, prossegue José Neves que coincide com Marcelo Rebelo de Sousa ao comparar a imagem de um “Cabral quase pacificado” à imagem de Mandela.

Leonor Pires Martins, coautora do livro-catálogo e que prepara um doutoramento sobre as biografias de Amílcar Cabral, destaca as suas várias dimensões do “homem agrónomo, da ciência” ao poeta, da fabricada imagem de guerreiro – “nunca andou na frente de combate” – ao “diplomata astuto que tanto negociava com os chineses, como com os soviéticos, e procurava apoio nos países nórdicos”, tendo sido recebido pelo Papa Paulo VI em 1970, numa audiência em conjunto com Marcelino dos Santos, da Frente de Libertação de Moçambique, e Agostinho Neto, do Movimento Popular de Libertação de Angola.

Da sua investigação diz ainda que passou a olhar de outra forma para a Guerra Colonial, que “tende a ser vista como um conflito entre o Exército português e os movimentos de libertação e era muito mais do que isso”, tendo em conta a rede de alianças e de apoios, da China à URSS, de Cuba à Checoslováquia e ainda aos países nórdicos.

José Neves, que vê em Cabral “um militante organizado e consequente no seu compromisso anticolonial”, aponta também para a recuperação da sua memória, “no contexto académico, intelectual e artístico Ocidental, com os movimentos em torno do chamado Black Lives Matter”, com a recuperação de figuras que lutaram nos movimentos de libertação africanos. “Também nesse contexto, Cabral ganha uma nova vida.”

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